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BIOÉTICA E CATOLICIDADE

  • Alan Dionizio (catequista leigo católico)
  • 17 de dez. de 2016
  • 7 min de leitura

I. Um convite em palavras...


Antes de pedir o consentimento do leitor e apresentar algumas idéias sobre o tema ‘Bioética e catolicidade’, gostaria de fazer algumas pequenas, mas convenientes advertências. Para tanto, recorro a uma alegoria presente na obra literária Luneta mágica, escrita por Joaquim Manoel de Macedo.


Esse livro narra a história de um jovem que era míope e apático para as realidades do mundo, sem nenhuma capacidade crítica. Após experimentar vários óculos especiais que o permitiam ver, julgar as ações e condutas humanas, uma vez que a partir de cada óculos ele enxergava de modo diferente as intenções das pessoas para com ele. Dá-se início o despertar de sua capacidade crítico-reflexiva, proporcionando os meios para que ele próprio descobrisse sua autonomia, construísse e assumisse sua cidadania.


Nesta metáfora literária compreendemos as “lentes” com que intensificamos o nosso olhar sobre o mundo e as relações interpessoais constituem a visão de mundo construída por cada pessoa. Assim, sem “lentes” adequadas não é possível enxergar o mundo com maior nitidez, é improvável importar-se com ele; porquanto, é difícil desejar transformá-lo para melhor. Este é o fim de um processo educativo, a meta da cidadania, a proposta de uma fé (religião) e a realização de uma pessoa ética: ser capaz de assumir conscientemente lentes para que as pessoas possam vislumbrar, alcançar e, responsabilizar-se pelo mundo.


Portanto, o termo catolicidade refere-se neste texto a identidade cristã católica que é proposta e assumida pelo fiel tanto em sua doutrina quanto na sua prática (moral): o crer convida a um agir.


Assim, a investigação ética deve “viver na coerência entre o agir e o ser, na coerência entre os princípios que a pessoa apregoa e aqueles em que ela se esforça de viver, ou seja, num esforço pela verdade interior que deve sempre aceitar o risco de uma exposição pessoal aos fatos.” (JACQUEMIN, 2000, p.54).


Se de modo superficial, convida-se o leitor a compreender que a Igreja possui, ao mesmo tempo em que é, uma lente para ver o mundo; de forma mais atentiva, convida-se o leitor a reconhecer a legitimidade da Igreja em defender socialmente seus valores e princípios diante das questões bioéticas. “[...] porque o homem que crê certamente não vive como um esquizofrênico: a vida de um lado e a fé do outro.” (JACQUEMIN, 2000, p.61).


2. Origem do termo ‘Bioética’


A palavra bioética foi empregada pela primeira vez, em 1970, pelo oncologista Van Rensselaer Potter, em um artigo intitulado The science of survival (A disciplina da sobrevivência), e no ano seguinte, em sua obra Bioethics: a bridge to the future (Bioética: uma ponte para o futuro).


Potter formulou o termo para destacar à relevância das ciências biológicas na melhoria da qualidade de vida do planeta. A bioética constitui-se num saber hemenêutico que, enquanto disciplina, propõe-se à interpretação do significado do corpo crescente de conhecimento científico e das questões éticas advindas deste avanço (POTTER, 1971).


Contudo, há no mesmo período, um outro autor passa a empregar a palavra bioética: André Hellegers, um ginecologista holandês e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Georgetown, na capital Washington, nos Estados Unidos. Ele publicou os livros The patient as person (O paciente como pessoa) e Fabricated man (Homem fabricado). Em 1971, André Hellegers funda o “Instituto Joseph e Rose Kennedy para Estudo da Reprodução Humana e da Bioética”, com apoio da família Kennedy que desejava promover estudos preventivos de deficiências mentais congênitas.


André Hellegers é quem dá o estatuto de disciplina à Bioética, considerando-a um ramo da ética aplicada, pautada em princípios filosóficos, capaz de examinar a história das ciências e do progresso humano.


3. Temas de Interesse da Bioética


Delineando o pensamento sobre as repercussões do pensamento bioético, afirma-se que os estudiosos da área já possuem convergência em relação ao objeto de estudo da bioética, a qual congrega temas em torno da deontologia e da responsabilidade legal do profissional em saúde, suscitando ainda debates relacionados a:

a) problemas éticos das situações sanitárias;

b) problemas éticos emergentes no âmbito das pesquisas sobre o homem, ainda que não diretamente terapêuticas;

c) problemas sociais relacionados com as políticas sanitárias (nacionais e internacionais), com a medicina ocupacional e com políticas de planejamento familiar e de controle demográfico;

d) problemas relativos à intervenção sobre a vida dos outros seres vivos (plantas, microorganismo e animais) e em geral sobre o que se refere ao equilíbrio do ecossistema (SGRECCIA, 2009, p. 44).


No campo de atuação da bioética, encontram-se temas polêmicos e pertinentes ao desenvolvimento social e profissional do trabalhador em saúde, como: pesquisa envolvendo seres humanos, progresso tecnocientífico, medicina e humanização, técnicas de reprodução assistida, saúde reprodutiva, engenharia genética, paciente terminal, a morte e o morrer, eutanásia, distanásia, transplantes e doação de órgãos, desigualdades devidas ao gênero, à raça e à idade, direitos do paciente, distribuição de recursos, saúde mental, qualidade de vida, meio ambiente, entre outros (LOLAS, 2001; PESSINI; BARCHIFONTINE, 2005).


Portanto, a bioética abrange desde situações encontradas em meio ao nosso cotidiano - como: fome, abandono, exclusão social, má distribuição de recursos escassos, racismo, discriminação dirigida aos excepcionais, aborto, eutanásia etc. - até situações emergentes, de limites ou fronteiriças como, por exemplo, novas técnicas reprodutivas, engenharia genética, transplantes, doação de órgãos entre outros. Assim, possibilitando um pensamento coerente sobre as melhores maneiras de lidar com as determinadas problemáticas.


Ademais, ressalta Barchfontaine (2004) que as questões bioéticas não constituem apenas uma reflexão sobre problemas relacionados a tecnologias futuras ou emergentes, mas a bioética insurge no mais tênue cotidiano das relações humanas em saúde, na preocupação e zelo para com a dignidade humana dos outros, usuários de serviços de saúde pública por vezes precários e com difícil implantação de políticas públicas de saúde resolutivas e eficazes, que visem o combate tanto a doenças como a problemas sociais relacionados à saúde das comunidades: gravidez na adolescência; uso de drogas lícitas e ilícitas, abortamentos clandestinos entre outros.


O leitor atento perceberá que não é difícil encontrar temas de estudo da bioética que também são de interesse da moral cristã católica em especial.


4. Alguns expoentes e obras recomendadas relacionadas à Bioética e Catolicidade

  • Bispo Católico Elio Sgreccia – Livro: Manual de Bioética (2v.). Editora Loyola.

  • Teólogo Marciano Vidal – Livro: Nova Moral Fundamental. Ed. Santuário.

  • Pe. Leocir Pessini; Pe. Christian Paul Barchifontaine – Livro: Problemas atuais de bioética. Ed. Loyola.

  • ENGELHARDT JR., H. Tristram. Livro: Fundamentos da Bioética. São Paulo: Loyola, 1996.


5. A Igreja é contra o progresso científico?


“A própria Igreja Católica condenou através dos séculos toda posição fideísta que tirasse da razão e da inteligência seu peso e seu valor, e isso com o mesmo vigor com que condenou as heresias no terreno das verdades reveladas; a Igreja defendeu, mais que tudo, o princípio de harmonia entre ciência e fé, entre razão e Revelação: uma harmonia nem sempre fácil e imediata, quer pela fraqueza da mente humana, quer pelas pressões ideológicas, quer pela dificuldade intrínseca dos problemas.

[...]. Razão e Revelação tem o mesmo autor, que é Deus, merecendo, assim, igual respeito, exigindo apoio mútuo.”. (SGRECCIA, 2009, p. 48).

“A fé e a razão são como as duas com as quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade.” (Encíclica Fé e razão. Papa João Paulo II).

6. Qual o interesse da Igreja diante das questões bioéticas?


O progresso científico é também um desafio para a Igreja, especialmente em suas dimensões ética e pastoral, mas que também demonstra que do ponto de vista da fé, “trata-se de um amplo trabalho de discernimento, de abertura à vida do Espírito, em que se procura descobrir, a cada vez de uma nova maneira, a vontade de Deus.” (JACQUEMIN, 2000, p.99).


“A Igreja é, em primeiro lugar, uma Boa Nova oferecida a todos e não um código, é a Boa Nova de um Deus preocupado com o homem e que por ele se inverte a si mesmo, como nos mostra claramente a dinâmica da Encarnação. E só, a Encarnação nos faz entender em toda sua profundidade e radicalidade essa solidariedade íntima entre a Igreja, o gênero humano e sua história.” (JACQUEMIN, 2000, p.89).


É importante destacar que a Igreja se coloca também, nas questões bioéticas, como defensora dos direitos humanos. Entretanto, num mundo secular e que promove a idéia da universalidade dos direitos humanos, a dignidade humana passa a ser um valor laico, o que faz com constantemente se questione sua legitimidade na esfera jurídica em questões morais a fim de expurgá-la deste espaço, como o pretende, por exemplo, o filósofo Boaventura de Sousa Santos.


Para a Igreja a dignidade humana só pode ser compreendida plenamente à luz de Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem que ilumina o valor pleno da pessoa humana. Nesse sentido não só a Igreja tem o que falar sobre a dignidade da pessoa humana como é capaz de denunciar e propor combates às ameaças aos direitos humanos.


7. Desafios à Igreja Católica


  • Igreja, lócus da Encarnação e da Evangelização: Participar e afirmar sua própria identidade nos espaços multidisciplinares em que as questões bioéticas são discutidas. Não é possível a Igreja expressar seus posicionamentos dogmáticos e morais sem a argumentação e o diálogo. Isto não significa que a Igreja precise estar se justificando sempre em suas ações, mas que o fiel precisa “compreender para crer”, como diz Sto. Agostinho. Para tanto, os sacerdotes precisam estar fundamentados não só na sã doutrina da Igreja, mas tanto quanto possível, sacerdotes, catequistas e agentes de pastorais devem estar informados e em constante diálogo com as ciências e as demais concepções filosóficas.


  • Igreja, lócus da Aliança: A mudança na percepção e sentido do sagrado atualmente cego para os valores cristãos. Esta alienação deve ser vista também com exercícios de compaixão e misericórdia. Hoje, é comum conhecer pessoas fora da comunhão da Igreja, mas que não querem deixá-la e ficam à espera das migalhas de pão que caiam da mesa. Este é um dos maiores desafios pastorais para a Igreja hoje: acolher os que por alienação do sagrado ou por fragilidade humana se colocaram fora de sua comunhão.

Creio que com intuito de concluir o texto de forma abrupta, sem oferecer uma conclusão sobre o tema ou apresentar posicionamentos ou justificativas doutrinárias para os problemas bioéticos enfrentados pela Igreja, prefiro acreditar que ao término do texto, o leitor conseguiu uma visão geral sobre o tema da bioética e deseja conhecer com paciência e prudência, sem julgamentos rápidos e falaciosos, os argumentos da Igreja.


“O ensinamento cristão deverá recordar sempre ao discípulo dos nossos tempos, esta sua condição privilegiada e o conseqüente dever de estar no mundo sem ser do mundo, segundo a oração de Jesus pelos seus discípulos, acima recordada: "Não peço que os tires do mundo, mas que os guardes do Maligno. Eles não são do mundo como Eu não sou do mundo" (Jo 17,15-16). É voto que a Igreja faz seu” (Papa Paulo VI).

Referências

JACQUEMIN, D. A bioética e a questão de Deus: caminho secular de interioridade e de espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 2000.

LOLAS,F. Bioética: o que é como se faz.São Paulo: Loyola,2001.

PESSINI, L., BARCHIFONTAINE, C. P. Problemas atuais de bioética. São Paulo, Loyola, 2005.

POTTER, V.R. Bioethics: bridge to the future. New Jersey: Prentice-hall, 1971.

SGRECCIA, E. Manual de bioética. Ed. Loyola. São Paulo, 2009.


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